13/03/2011

Um pouco de Henry Miller



(...) a pessoa se extasia com o espetáculo sempre mutante dos fenômenos momentâneos. Isto é a sublimidade, o estado amoral do artista, aquele que só vive o momento, o momento visionário de pura e prospectiva lucidez. Uma sanidade tão clara e fria que se assemelha à loucura. Pela força e capacidade de visão do artista, o todo estático e sintético a que chamamos mundo é destruído. O artista nos devolve um universo vital, vibrante, vivo em todas as suas partes.
(...)
Toda vez que nasce espiritualmente ele sonha com o impossível, o miraculoso, sonha que pode partir a roda da vida e da morte, evitar o conflito e o drama, a dor e o sofrimento da vida. Seu poema é a lenda em que se enterra, na qual narra os mistérios do nascimento e da morte - a realidade dele, a experiência dele. Enterra-se no poema-túmulo para alcançar aquela imortalidade que lhe é negada como ser físico.
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O sonho artístico do impossível, do miraculoso, resulta simplesmente de sua inabilidade de se adaptar à realidade. Ele cria, assim, uma realidade própria - no poema - uma realidade que lhe convém, uma realidade em que pode viver integralmente os seus desejos, anseios, sonhos. (...) Quando o homem se torna inteiramente consciente de sua capacidade, de seu papel, de seu destino, ele é um artista e cessa de lutar com a realidade. Torna-se um traidor da raça humana. Ele cria  guerra porque deixou para sempre de marchar na cadência do resto da humanidade. (...) Vive integralmente o seu sonho do Paraíso. Transmuta sua experiência real de vida em equações espirituais. Despreza o alfabeto normal, que produz no máximo uma gramática do pensamento, e adota o símbolo, a metáfora, o ideograma. Escreve chinês. Cria um mundo impossível com uma linguagem incompreensível, uma mentira que encanta e escraviza os homens. Não é que seja incapaz de viver. Pelo contrário, seu gosto pela vida é tão forte, tão voraz que o força a se matar repetidamente. Morre muitas vezes para poder viver inúmeras vidas. Desta maneira sacia sua vingança da vida e exerce seu poder sobre os homens. Cria a lenda dele mesmo, a mentira em que se afirma como herói e deus, a mentira na qual triunfa sobre a vida.
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É preciso dar um sentido à vida pela razão óbvia de que ela não tem sentido.
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E a maneira de escapar da morte é escapar da vida. Isto o artista sempre expressou por meio de suas criações. Vivendo a arte ele adota o mundo como uma esfera intermediária na qual é todo-poderoso, um mundo que domina e governa. Essa esfera intermediária da arte, esse mundo onde ele caminha como herói, só se tornou realizável devido ao profundo sentimento de frustração que nasce paradoxalmente da impotência, da percepção da inabilidade de contrariar o destino.
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Porque a cada fracasso realista ele se refugia ainda mais nas suas ilusões criativas. Toda a sua arte é o esforço patético e heróico de negar sua derrota humana. Ele alcança, em sua arte, um triunfo irreal - uma vez que nem é triunfo sobre a vida nem sobre a morte. É um triunfo sobre um mundo imaginário que ele próprio criou. O drama se passa inteiramente na esfera das idéias. Sua guerra com a realidade é um reflexo da guerra dentro dele mesmo.
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Pois ao viver integralmente a sua lógica de sonho, e se realizar através da destruição do próprio ego, ele está encarnando para a humanidade o drama da vida individual que, para ser provada e experimentada, precisa incluir a destruição. A fim de realizar o seu propósito, porém, o artista é obrigado a se recolher, a se retirar da vida, utilizando apenas a experiência necessária para aparentar o sabor da luta real. Se escolher viver ele frustra a própria natureza. Precisa viver substitutivamente. Assim, se torna capaz de desempenhar o monstruoso papel de viver e morrer inúmeras vezes, na medida de sua capacidade para a vida.
(...)
Por meio da loucura e do êxtase o mistério do deus é reencenado e os foliões ébrios adquirem a vontade de morrer - de morrer criativamente.
(...)
Avançar para a morte! Não recuar para o útero. Sair das areias movediças, do fluxo estagnado! Este é o inverno da vida, e o nosso drama é nos firmar para que a vida possa novamente prosseguir. Mas essa firmeza só pode ser conquistada pisando sobre os cadáveres daqueles que estão dispostos a morrer.

Trechos do ensaio A  morte criativa, 
primeiro texto do livro A Sabedoria do Coração




No início da tarde de dez de março, chegando ao trabalho, deparei-me com um velho exemplar de  A Sabedoria do Coração, de Henry Miller, disposto sobre uma estante, para doação. Às vezes custamos a encontrar o livro ou o artista que buscamos. Às vezes são eles mesmos quem nos encontram. E às vezes encontramos um ao outro, um dentro do outro, e a nós mesmos, perdidos nas palavras alheias.
Justamente também, neste mesmo dia, gravei em minha pele a metáfora, o símbolo de minhas sucessivas mortes criativas. Sincronicidade ou não, prefiro assumir como um misterioso sinal; uma confirmação de que ao menos o meu real não é outro senão eu.